sexta-feira, 23 de maio de 2014

Situação política na Tailândia: ...arrebenta, fica tudo queimado

Mal eu sabia na semana passada que o desenrolar dos acontecimentos desencadeados pela demissão da Primeira Ministra no dia 7, iria dar em golpe de Estado. Haviam inúmeras hipóteses em cima da mesa para resolver o impasse político de outra forma, mas a teimosia irredutível dos líderes de cada uma das facções levou a que as tais medidas drásticas que mencionei no último parágrafo do meu artigo de dia 15 viessem a lume.

Ontem, exactamente às 5 da tarde era anunciado em todas as cadeias de radio e televisão a tomada do poder por uma Junta militar liderada pelo General Prayuth Chan-ocha, sensivelmente ao fim de 3 dias de Lei marcial instalada na Tailândia. O impasse nas negociações que se desenrolavam entre os líderes das duas facções fez desesperar o impaciente General, que perante tantas negativas decidiu encerrar a reunião e deter todos os presentes. Desde essa hora que os canais e radio tailandeses ficaram bloqueados de qualquer transmissão. Seguiu-se o anúncio de recolher obrigatório das 22:00 às 5:00 e do encerramento prematuro dos diversos serviços de transporte, centros comerciais e do precioso 7/11 às 21:00. O bloqueio de todas as estações internacionais veio perto das 20:00, quando os nossos miúdos assistiam a mais um episódio da Doc McStuffins (Dra Brinquedos) no canal da Disney. Uns minutos depois surgia um rumor pelo Twitter de que a Internet seria cortada pelas 21:00 ou 22:00, depois de uma reunião entre o Exército e os fornecedores locais.


Este chorrilho de acontecimentos começou a causar-nos bastante ansiedade e incerteza do que poderia acontecer. Na entrada do condomínio, famílias de malas aviadas deseperavam por um taxi que as levasse ao aeroporto, mal elas sabiam que milhares de expatriados decidiram tomar a mesma medida desesperada de "fugir" e que as bombas de gasolina estavam a encerrar a partir das 20:00, deixando os taxistas sem possibilidade de encher o depósito e atender a tantos pedidos (nem quero imaginar quanto estariam a pedir para levar pessoal ao aeroporto...).

O Twitter passou a ser o meu principal veículo de informação sobre o que se estava a passar. De tempos a tempos, a Junta Militar ia anunciando algo na televisão e lá ia eu para o laptop tentar perceber o que estava a ser divulgado. A Constituição foi revogada, o Senado e Câmara de Representantes dissolvidos, o Governo em funções desmantelado e o General Prayuth passa a ser o novo Primeiro Ministro. O Primeiro Ministro interino Niwattumrong, que ocupou o cargo depois da demissão de Yingluck Shinawatra, tinha recusado participar da reunião de ontem, muitos o apelidaram de esperto, pois assim não acabou preso como todos os outros que lá foram. Ainda correu o boato de que este andava a monte e teria pedido asilo na Embaixada Americana, prontamente desmentido pela Embaixadora Kristie Kenney.

Os locais de manifestação do PDRC em Ratchaprasong e Chaengwattana, e da UDD em Aksa road foram desmantelados, uns mais prontamente que outros. Havia relatos de resistência do lado da UDD, tiroteios eram reportados e muitos elementos deste grupo estavam a ser detidos, mas a falta de informação concreta sobre o que se estava a passar era gritante. Do lado do PDRC, o anúncio do golpe de Estado foi celebrado pelos manifestantes, não houve qualquer confronto com o Exército, e depois de cantado o hino nacional às 18:00 (como é hábito diário na Tailândia), as pessoas abandonaram o local e foram calmamente para casa. Mesmo o monge que liderava o palco de Chaengwattana se entregou aos militares. Tudo isto só demonstra que o povo não partilha da mesma opinião e que pode haver reacções indesejadas às medidas propostas pela Junta.


Sempre fui um apaixonado da Revolução de Abril e toda aquela asáfama que foi o dia da Revolução e os primeiros meses da nossa evolução como Democracia. Adorava ter vivido naquela época e ter participado activamente no PREC, guiando o nosso país cheio de sonhos e esperança de obter algo mais, que a Ditadura do Estado Novo impediu durante décadas. No entanto este golpe é bem diferente... Uma Democracia a precisar de uns ajustes significativos, mas onde a população elegeu o seu Parlamento, Senado (parcialmente) e Governo, só para o ver retirado de suas mãos uma vez mais pelos militares, passando a haver censura e controlo apertado. Há grandes suspeitas, e devidamente documentadas, de corrupção por parte dos elementos do Governo eleito, bem como de compra de votos durante o processo eleitoral, mas será que isso justifica mais um golpe? Em 2006 aconteceu exactamente a mesma coisa e repete-se a receita falhada de então?

Sinceramente, durante a madrugada esperei que o Exército ocupasse pontos chave da cidade e estabelecesse um tipo de controlo apertado sobre a população. Pensei acordar de manhã e ver a cidade cheia de militares, a revistar automóveis pelo transito caótico e a guiar os cabisbaixos tailandeses para mais um dia de trabalho, em grupos de 2, para não haver conspirações. Assistir a publicações no Twitter onde se denunciaria a agressividade do Exército perante um pequeno grupo de estudantes esquerdistas que se opunham ao golpe. Os supermercados cheios de gente a comprar tudo o que houvesse nas prateleiras e os bens de primeira necessidade a se tornarem escassos.


O que vi de manhã foi absolutamente surpreendente, o que já não devia ser o caso, visto que já moro aqui há quase 3 anos. Devia pensar como tailandês e não como português. As ruas estavam vazias de militares, não vi um único, nem sequer para tirar uma foto aqui para o blogue. Não havia transito e tudo se desenrolava como em qualquer outro momento do quotidiano de Bangkok. A indiferença com que a população tratou os acontecimentos de ontem foi deveras impressionante e absolutamente oposta às reacções que lia no Twitter, vindas de jornalistas e seus seguidores. Mas eu já devia saber melhor do que isto. É uma reacção que, depois de devidamente mastigada, se percebe como verdadeiramente tailandesa, não perder a postura, aceitar aquilo que a vida te dá. Isso e o facto de que este é provavelmente o 4º ou 5º golpe militar por onde passam: "Been there, done that..."

Entretanto, durante o dia a Junta lançou uma lista com 155 pessoas com afinidades políticas, que tinham de se apresentar até ao final do dia junto do Quartel-General do Exército, sobe pena de ser engaiolados. Dessa lista constavam os nomes de diversos membros da família Shinawatra e também do Primeiro-Ministro interino Niwattumrong. Mas caso apareçam, julgo que serão engaiolados de qualquer maneira... Também foi marcada uma reunião com os Embaixadores para esta tarde, às 16:00, mas muitos deles anunciaram que não iriam comparecer, pois não se queriam identificar com a Junta militar que tomou o poder (muitos chefes de Estado ocidentais condenaram o golpe e o seu carácter anti-democrático, mas na minha opinião eles só não queriam correr o risco de vir a ser presos, que este General não brinca em serviço!).

Estou muito mais calmo que ontem, e amanhã estarei ainda mais. Vai ser um fim-de-semana caseiro. Parece que já começaram a desbloquear a televisão, o que ao menos me vai deixar ver a final da Champions e uns joguinhos das finais de Conferência da NBA. Há a possibilidade de irmos de férias mais cedo, mas vamos aguardar mais umas semanas para ver no que isto dá. Entretanto, vou me mantendo activo no blogue, dando conta do que por aqui se vai passando.

PS: Na última foto que aqui coloquei está uma jornalista, que decidiu protestar pacificamente contra o encerramento da estação de televisão onde trabalhava. Acabou de sair o anúncio oficial do seu despedimento... arrebenta, fica tudo queimado...


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